Figura emblemática da intelectualidade brasileira, Mindlin se destacou antes de mais nada por seu amor aos livros. Formou ao longo de sua vida uma coleção de mais de 40 mil volumes. Parte desta trajetória está registrada em seu discurso de posse da ABL, cuja algumas observações (sobretudo às relacionadas à sua biblioteca) passamos a destacar.
Mindlin explica que aos 13 anos, quando começou a freqüentar os sebos de São Paulo, encontrou uma edição portuguesa do Discurso sobre a História Universal, de Bossuet, publicado em Coimbra, em 1740, data que o fascinou, destacando que esta “foi a semente da busca de livros raros, embora mais tarde tivesse aprendido que a data das edições é um elemento secundário em sua importância”.
O bibliófilo destaca que “partir desse início inesperado, surgiu o processo de formação da Biblioteca sem que, no entanto, ela tivesse sido planejada”. A voracidade pela leitura foi elemento chave para a concretização da biblioteca que, como destaca Mindlin, cresceu ao sabor de suas leituras e “a leitura continuou sendo o fulcro e a razão de ser de sua existência”.
Segundo o imortal da ABL, “para seu [da biblioteca] crescimento, no entanto, foi importante que ela se tivesse tornado um interesse central de vida. Exigiu a leitura de obras de referência sobre a história literária brasileira e estrangeira, leitura de catálogos e na, base disso, o exercício da garimpagem”. Mindlin observa que “os livros não caem do céu: a gente os procura e, coincidentemente e principalmente em matéria de livros raros, eles também nos procuram”, destacando que “a aventura da garimpagem provoca, mesmo em céticos como eu, a suspeita de que alguma coisa sobrenatural possa estar protegendo as buscas do leitor apaixonado. Chego a pensar que embora a leitura seja uma fonte inesgotável de prazer, a garimpagem provoca um prazer diferente, às vezes superior ao outro. Quando se encontra uma obra procurada durante décadas, o coração bate mais forte [...] ao passo que depois de adquirido o livro, já acomodado na estante, seu manuseio e leitura proporcionam prazer, mas a emoção propriamente dita deixa de existir ou não é a mesma”.
Sorte e conhecimento são fatores indispensáveis para o bom garimpeiro de livros, aponta Mindlin, apresentando alguns exemplos: “Quando chego numa cidade estrangeira, uma das primeiras coisas que faço é procurar nas páginas amarelas os principais livreiros antiquários. Certa vez, em Santiago do Chile, onde só encontrei o nome de um antiquário, fui procurá-lo, mas esbarrei na porta fechada. Voltei mais tarde, e vendo uma pessoa dentro da livraria, fui abrindo a porta de vidro quando o livreiro me barrou: ‘Estamos en vacaciones’. ‘Yo también’, respondi. E isso estabeleceu logo uma relação informal. Perguntei se tinha obras sobre o Brasil, mas ele me disse que a especialidade da livraria era literatura e teatro francês, nada tendo sobre o Brasil. Enquanto falávamos, no entanto, vi numa das prateleiras do alto A Arte da Língua Guarani, do Padre Montoya, e disse ao livreiro que aquilo era uma coisa de interesse brasileiro. ‘Isso’, disse ele, ‘é o resto da biblioteca de um historiador brasileiro que comprei há muito tempo, um tal de Porto’. ‘Porto Seguro?’, perguntei eu. O que ele confirmou. ‘E onde estão esses livros?’. ‘Num depósito, mas não dá para ver agora nas férias’. Sem perder a coragem, insisti e acabei conseguindo marcar uma visita ao depósito no dia seguinte, onde se achavam os livros que Francisco Adolpho de Varnhagen, o Visconde de Porto Seguro, tinha em seu escritório quando faleceu em Viena em 1878. Sua biblioteca tinha ido para o Itamaraty, mas os papéis e livros mais próximos dele foram levados para Santiago por sua viúva, que era chilena. Ali encontrei coisas preciosas, como provas de folhetos corrigidas por ele e que tinham permanecido inéditas, e a segunda edição da História do Brasil com numerosas alterações manuscritas que não figuram nas edições subseqüentes. Um manancial, enfim, dos tais de fazer o coração bater mais forte”.
No discurso, Mindlin destaca sua empreitada como livreiro em Paris na década de 1940, cujo insucesso já era previsto, tendo em vista a incompatibilidade entre as atividade de vendedor e colecionador de livros que este acumulava, situação que um grande amigo seu, Luiz Camillo de Oliveira Netto, já havia ponderado. “A livraria, que se chamou Parthenon foi, no entanto, apenas um acidente na formação da Biblioteca cujo crescimento foi se processando continuamente, desde 1927, tanto com aquisições no Brasil como no exterior, nas viagens que minha mulher e eu fazíamos e onde ela me encorajava nas extravagâncias que eu hesitava em fazer”, observa Mindlin.
Uma observação sobre leitura me parece sobremaneira importante. Mindlin sugere, acerca da leitura de Os Sertões de Euclides da Cunha, que “não seria nada mau começar a leitura pela parte da Guerra, depois o Meio e, por fim, o Homem. Na leitura convencional, imagino que muita gente não vá até o fim”.
Continuando a explicação sobre a origem de sua biblioteca, Mindlin observa: “seria cansativo para os que me ouvem, ou talvez até pretensioso, estar mencionando as principais raridades mas, além das duas versões da primeira edição dos Lusíadas, uma com o pelicano à direita do leitor e a outra à esquerda, creio que deve ser dito que a Biblioteca possui o Sonho de Poliphilo, publicado em 1499, por Aldus Manucius, erudito editor de Veneza, que revolucionou o mundo editorial da época, tornando-se um dos mais belos livros publicados em todos os tempos”.
Com relação à organização propriamente dita (classificação etc.) da biblioteca, Mindlin destaca que ela havia crescido ao sabor de suas leituras e que estas foram indisciplinadas, mas cedo se convenceu “de que alguma ordem deveria existir sob pena de ela se transformar numa acumulação desordenada de livros”. “Isto me levou a estabelecer certas vertentes”, observa Mindlin, que são basicamente as seguintes: livros sobre o Brasil, (inclui Literatura, História, Viagens, História Natural, Arte etc). “É quase por si só uma biblioteca”, observa o bibliófilo, destacando que “as outras vertentes são a literatura universal, as obras de referência e a história do livro, com exemplares do que este foi desde o século XV até os nossos dias, pois tenho especial interesse pela arte gráfica, não sabendo se fui gráfico numa encarnação anterior ou se virei a ser numa encarnação futura”.
Abaixo destaco alguns trechos do discurso:
“O setor de obras de estudos brasileiros acabou formando um conjunto indivisível, o que levou muitos amigos a nos perguntarem qual seria o seu destino. Isso também nos preocupou durante muitos anos, e chegamos à conclusão de que um conjunto dessa natureza deveria se tornar um bem público, pois tinha excedido o que seria razoável para uma propriedade particular. Além disso, não podia correr o risco de ser fragmentado, pois o material nele contido constitui fonte de pesquisa que, sem falsa modéstia, acho que posso qualificar de importante. Decidimos então, Guita e eu, e nossos quatro filhos, doar nossa Brasiliana à Universidade de São Paulo, que está construindo um prédio para recebê-la e formou uma unidade universitária denominada Biblioteca Brasiliana Guita e José Mindlin (http://www.brasiliana.usp.br). Com isso esperamos formar no futuro um centro de estudos brasileiros composto por nossa Biblioteca, pelo acervo do Instituto de Estudos Brasileiros da USP e pela Biblioteca de Rubens Borba de Moraes, de quem adiante falarei, tudo representando uma fonte de estudo e pesquisa que não existe em nenhuma outra universidade brasileira e, muito menos, fora do Brasil”.
“Tive a veleidade de ser uma espécie de editor bissexto, publicando fac-símiles de obras difíceis de se encontrar de literatura brasileira, especialmente do Modernismo, pois que, não tendo sido este tomado a sério pelo grande público na ocasião, as obras não se conservaram e se tornaram raridades, como a Revista de Antropofagia, a Verde de Cataguases, ou A Revista, de Carlos Drummond de Andrade, além de outras. Essas reedições foram feitas sempre com a colaboração e programação gráfica de minha filha Diana. Quando fui Secretário de Cultura do Estado de São Paulo publiquei uma série de obras de problemático sucesso comercial mas de grande interesse intrínseco, como a obra completa de Amadeu Amaral ou as Memórias de Paulo Duarte, assim como ensaios literários sobre o Modernismo e Guimarães Rosa”.
“Tenho também uma desculpável obsessão por manuscritos e procurei reunir, na Biblioteca, alguns de destacados escritores da era pré-computador. Posso mencionar originais manuscritos ou datilografados com numerosas correções autógrafas de Sobrados e Mucambos, de Gilberto Freyre, Banguê, de José Lins do Rego, Olhai os lírios do campo, de Érico Veríssimo, O Quinze, de Rachel de Queiroz, Serafim Ponte Grande, de Oswald de Andrade, O louco do Cati, de Dionélio Machado, Epigramas Irônicos e Dentimentais, de Ronald de Carvalho, e isto sem falar de duas estrelas que são Vidas Secas, de Graciliano Ramos e Grande Sertão, de Guimarães Rosa. São numerosos também os manuscritos históricos e cartas e documentos autógrafos dos principais escritores brasileiros”.
“Classifiquei a Biblioteca de indisciplinada porque considero que os livros são feitos para nós e não nós para os livros, de sorte que as vertentes não são rígidas e quando encontro alguma obra que me seduz mas não se enquadra em qualquer das vertentes, nem por isso deixo de comprá-la. Da vertente Literatura não falei em poesia que tem um papel importante na Biblioteca e em nossa vida. Tanto a poesia brasileira desde Gregório de Mattos e autores mineiros, até os principais poetas do século XIX e do Modernismo brasileiro se encontram nas estantes, assim como os grandes nomes da poesia universal, da qual se tivesse de destacar um nome, escolheria Baudelaire, de cujas Flores do mal a Biblioteca possui a edição original com as peças censuradas e até uma pré-edição parcial publicada na Revue des Deux Mondes. Sempre tive a mania de ler poesia em voz alta, com a sorte de minha mulher preferir ouvir a ler poesia, o que permite imaginar quanta poesia foi lida em casa nestes quase setenta anos de convivência”.
“Tive dois grandes interlocutores durante a formação da Biblioteca, que me fazem falta até hoje: Luiz Camillo de Oliveira Netto, que foi diretor da Biblioteca do Itamaraty, da qual foi demitido por ter sido um dos autores do Manifesto dos Mineiros, escrito em 1943, contra o Estado Novo, químico de formação, homem de grande cultura literária, histórica e musical, com excelente biblioteca. O outro, - o primeiro, aliás – foi Rubens Borba de Moraes, autor da Bibliographia Brasiliana que contém a descrição de todas as obras raras sobre o Brasil, de 1504 até 1900, obra que se pode classificar de monumento de erudição, e de outros livros sobre bibliografia brasileira, além de um delicioso livrinho publicado em 1924, Domingo dos Séculos, em que já fala de Proust. Rubens possuía uma excelente biblioteca brasiliana que nos deixou em testamento. Foi diretor da Biblioteca Nacional, onde o substituiu Josué Montello e logo depois convidado para formar e dirigir a Biblioteca da ONU. Foi um leitor incansável da literatura universal, como Luiz Camillo, ambos dotados de grande senso de humor, o que certamente foi um dos elementos de nosso fraterno entendimento”.
São tantas e tão importantes as observações que Mindlin faz sobre sua rica biblioteca e sua relação com os livros que sugiro a leitura na integra deste texto: http://www.academia.org.br/abl/cgi/cgilua.exe/sys/start.htm?infoid=4777&sid=546
Eu tenho um livro dele e esse cara é(era) o "cara"
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