Não constitui
prática comum de minha parte postar na integra neste blog reflexões que não
sejam as minhas próprias. Contudo, frente à contundência da argumentação de
Luiz Roberto Barroso acerca do caso Cesari Battisti, vale abrir uma exceção. Posto
abaixo a carta divulgada recentemente pelo eminente advogado, cuja admirável
inteligência tive o prazer de prestigiar nas aulas de Direito Constitucional na
Faculdade de Direito da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, onde este
ocupa a titularidade da disciplina. No texto, Barroso registra ter feito bom
proveito das manifestações, tanto favoráveis quanto as desfavoráveis, narrando
os fatos e as teses jurídicas em discussão. Conclui dizendo que a partir dali “cada
um formará seu próprio juízo, de acordo com seus valores, suas crenças, seus
desejos".
Nas últimas semanas, tenho acompanhado, com interesse
profissional e acadêmico, os diversos artigos e comentários que têm sido
veiculados em Migalhas sobre o processo envolvendo o pedido de extradição e a
concessão de refúgio a Cesare Battisti. Fiz grande proveito pessoal de todas as
manifestações, assim as favoráveis como as desfavoráveis. Naturalmente, como
advogado da causa, não poderia me apresentar como alguém que tenha uma visão
neutra e imparcial. Mas, de longa data, sou militante da crença de que quem
pensa de maneira diferente da minha não é meu inimigo nem meu adversário, mas
meu parceiro na construção de um mundo plural e tolerante. E acho, de maneira
igualmente sincera, que em um tema levado ao debate público, todos têm direito
à própria opinião. Mas, talvez, não aos próprios fatos. As anotações que se
seguem têm por finalidade narrar objetivamente os fatos relevantes e expor as
principais teses jurídicas que estão em discussão. Ao final, cada leitor, de
maneira independente e esclarecida, formará a sua convicção.
1. Militância comunista e no PAC. Cesare Battisti
ingressou na organização Proletários Armados pelo Comunismo (PAC) em 1976, com
pouco mais de 20 anos. Nascido em uma família comunista histórica, militou
desde os dez anos na causa, tendo participado dos movimentos Lotta Continua e
Autonomia Operária. O PAC praticou inúmeras ações subversivas no período entre
1976 e 1979, com o propósito de enfraquecer e, eventualmente, derrubar o regime
político italiano. Tais ações incluíram furtos de carros, furtos em
estabelecimentos de crédito, furtos de armas, propaganda subversiva e quatro
mortes. Os mortos foram um agente penitenciário, um agente policial e dois
“civis”: um joalheiro e um açougueiro. Os dois civis eram ligados à extrema
direita, andavam armados e haviam matado militantes de esquerda, em reação a
“operações subversivas de auto-financiamento”.
2. Fim do PAC, prisão e julgamento de seus membros.
Em 1979, a organização Proletários Armados pelo Comunismo foi desbaratada e a
maioria de seus membros foi presa. Levados a julgamento por todas as operações
do grupo naquele período, houve diversas condenações. Quatro dos integrantes do
PAC – mas não Cesare Battisti – foram condenados por um dos homicídios: o do
joalheiro Torregiani. Cesare Battisti não era considerado sequer suspeito de
qualquer dos homicídios e não foi acusado de nenhum deles. Foi condenado, no
entanto, a uma pena de 12 anos por delitos tipicamente políticos: participação
em organização subversiva e participação em ações subversivas. Esteve preso de
1979 a 1981, em uma prisão para presos políticos que não haviam cometido ações
violentas. De lá evadiu-se em 1981, em operação conduzida por um dos líderes do
grupo – Pietro Mutti –, que não havia sido preso ainda. Battisti refugiou-se
inicialmente no México e depois na França, onde recebeu abrigo político.
3. A delação premiada. Em 1982, Pietro Mutti, que era
acusado pelos homicídios e por participação na maioria das ações do grupo, foi
preso. Abstraindo das muitas denúncias da Anistia Internacional sobre torturas no
período, o fato é que Mutti torna-se “arrependido” e “delator premiado”. Nessa
condição, acusa Cesare Battisti de ter sido o autor dos quatro homicídios
atribuídos ao grupo. Como dois dos homicídios ocorreram no mesmo dia, em
localidades diversas e distantes – o do joalheiro Torregiani e o do açougueiro
Sabadin –, Mutti afirmou que Battisti seria responsável pelo primeiro como
autor intelectual – teria participado de uma reunião em que se discutiu a ação
– e do segundo como cúmplice, dando cobertura ao autor do disparo. Nos outros
dois homicídios – dos agentes Santoro e Campagna –, Mutti acusou Battisti de
ter desferido os tiros.
4. “Provas” totalmente frágeis. As únicas provas
contra Battisti foram a delação premiada de Mutti e a “confirmação” feita por
outros acusados dos homicídios e das ações do PAC. Mutti mudou diversas vezes
de versão e de pessoas às quais acusava, protegendo e incriminando
deliberadamente determinados militantes, conforme reconhecimento textual da
sentença. As outras “provas” referidas na sentença italiana fariam corar um
aluno de primeiro ano de direito penal. Coisas do tipo: o autor do disparo
contra Santoro, segundo testemunhas, era louro e de barba. Battisti é moreno e
sem barba. No entanto, segundo Mutti, ele estaria disfarçado. Outra “prova”: a
pessoa que ligou para a agência de notícias reivindicando a autoria do fato
tinha sotaque do sul da Itália. Battisti é do sul da Itália. Logo, Battisti é o
autor do homicídio!? Mais ou menos como incriminar alguém no Brasil por ter sotaque
nordestino.
5. Réu revel e indefeso. Procurações falsas. A trama
era extremamente simples: a culpa de todos os homicídios foi transferida para
Cesare Battisti, o militante que estava fora do alcance da Justiça italiana,
abrigado na França. Sem surpresa, o processo de Battisti foi “reaberto”, tendo
sido ele julgado à revelia e condenado à prisão perpétua. Sem ter indicado
advogado e sem ter sido defendido eficazmente. Detalhe importante: as
procurações pelas quais os advogados de defesa teriam sido constituídos foram
consideradas falsas em perícia realizada na França. De fato, ao fugir, Battisti
deixou folhas em branco assinadas. Tais folhas foram preenchidas anos depois –
este o fato comprovado pela perícia –, com nomes de advogados que defendiam
diversos dos acusados, indicados pela liderança do PAC (isto é, pelos delatores
premiados). Não apenas o conflito de interesses era evidente, como o advogado
que “defendeu” Battisti afirmou que jamais falou com ele, razão pela qual
sequer poderia contestar as acusações sobre novos fatos imputados pelos
delatores premiados.
6. Abrigo político na França. Battisti permaneceu na
França, como abrigado político, por 14 anos. Trabalhou como zelador até
tornar-se um escritor reconhecido, publicado pelas principais editoras
francesas. Dentre outras coisas, denuncia as arbitrariedades da repressão
italiana. Em 1991, a Itália requereu sua extradição, que foi negada pela
Justiça francesa. Cesare Battisti casou-se e teve duas filhas, uma nascida no
México, hoje com 25 anos, e outra na França, hoje com 14 anos. Jamais esteve
envolvido ou foi acusado de qualquer ação anti-social desde 1979. Em 2003, mais
de 12 anos depois do primeiro pedido de extradição, Sylvio Berlusconi chega ao
poder na Itália e passa a perseguir os antigos militantes que haviam
participado dos anos de chumbo. Diante da recusa da Inglaterra e do Japão de
extraditarem antigos acusados, Cesare Battisti se transforma no último troféu
político daquele período. A Itália requer uma vez mais à França, já agora sob o
governo de Jacques Chirac, a extradição de Cesare Battisti. A França defere.
Antes da execução da decisão, Cesare Battisti foge para o Brasil.
7. Prisão e refúgio no Brasil. Em 2007, já próximo
das eleições francesas, Battisti é preso no Brasil com a ajuda da polícia
francesa, à época comandada por Sarkozy, Ministro do Interior e candidato à
presidência. Sua prisão é utilizada como tema de campanha eleitoral, fato
amplamente noticiado pela mídia européia. A Itália requer sua extradição. Como
a Constituição brasileira veda a extradição por crime político, o pedido
italiano destaca do conjunto das condenações apenas os quatro homicídios e
sustenta a tese de que foram crimes comuns. Cesare Battisti requer a concessão
de refúgio político ao CONARE – Comitê Nacional de Refugiados. O pedido é
indeferido por três votos a dois. Em janeiro de 2009, o Ministro de Estado da
Justiça, Tarso Genro, apreciando recurso contra aquela decisão, concede-lhe
refúgio político.
8. Fundamentos do refúgio. A decisão do Ministro da Justiça
se baseou em um conjunto de fatos que são notórios e foram adequadamente
narrados na sua fundamentação. A Itália de fato viveu um período de convulsão
política conhecido como “anos de chumbo”. Esse período foi marcado por
violência, radicalização e pela aprovação de legislação de exceção. Inúmeros
relatórios dos organismos internacionais de direitos humanos registraram fatos
graves no período, associados à conduta do Estado italiano. Cesare Battisti foi
condenado em julgamento coletivo por tribunal do júri, à revelia. Sua
extradição só foi concedida pela França, depois de 14 anos, quando o ambiente
político havia se modificado na Itália e na França. Era plausível o temor de
perseguição política. Alguém pode até discordar da avaliação política do Ministro.
Mas a decisão foi bem fundamentada, tendo sido manifestada em linguagem polida
e diplomática.
9. Por qual razão aceitei a causa. Procurado pela
escritora francesa Fred Vargas, em nome de um grupo de intelectuais franceses
que apóia Cesare Battisti, dispus-me a estudar o caso. E, após fazê-lo, aceitei
a causa, por considerá-la moralmente justa e juridicamente correta. E isso por
duas linhas de razões. A primeira: sou convencido, pelo conjunto consistente de
elementos objetivos descritos acima, que Battisti foi transformado em bode
expiatório. Seus ex-companheiros e, depois, delatores premiados, estavam certos
de que ele se encontrava protegido na França e transferiram-lhe crimes e culpas
que jamais teve e pelas quais não havia jamais sido acusado. Ademais, é fora de
dúvida que não teve devido processo legal. E de que é um perseguido político.
Ainda que não estivesse convencido desses argumentos – como de fato estou –,
haveria um segundo, muito consistente.
10. A derrota do socialismo e a vingança da história.
Mais de trinta anos se passaram desde os fatos relevantes para o presente
processo, ocorridos no auge da guerra fria, do embate entre socialismo e
capitalismo. O sonho socialista e a tomada revolucionária do poder faziam parte
do imaginário de um mundo melhor de toda uma geração. A minha geração. Eu vi e
vivi, ninguém me contou. Condenar esses meninos e meninas – era isso o que eram
quando entraram para o movimento – décadas depois, fora de seu tempo e do
contexto político daquela época, após a queda do muro de Berlim e da derrota da
esquerda, constitui uma expedição punitiva tardia, uma revanche fora de época,
uma vingança da história. Gosto de lembrar de uma frase que está inscrita na
capela do Castelo de Chenonceau, na França, na entrada, à direita: “A ira do
homem não realiza a vontade de Deus”.
O DIREITO
11. Natureza do ato de refúgio. O Ministro da Justiça
concedeu refúgio a Cesare Battisti por fundado temor de perseguição política,
com base no art. 1º, I da Lei nº 9.474/97. Trata-se, inequivocamente, de um ato
político, com ampla margem de valoração discricionária. Havia orientação
jurisprudencial expressa do Supremo Tribunal Federal a respeito. Com efeito, a
crença de que o conceito jurídico indeterminado “perseguição política” possa
ser tratado como algo rigorosamente objetivo, sem margem a valoração discricionária,
é singularíssima. Além do precedente já referido – caso Medina –, a doutrina é
pacífica. O Professor Celso Antônio Bandeira de Mello, referência nacional e
internacional do direito administrativo brasileiro, e citado em favor da tese
de que se trataria de ato vinculado, veio a público para dizer, textualmente,
que discordava veementemente desse ponto de vista. Além disso, afirmou que a
Lei nº 9.474/97 impõe que seja extinta a extradição após a concessão de
refúgio. Nesse ponto, aliás, a lei brasileira apenas reproduz as Convenções
internacionais sobre refúgio e asilo. Não desconheço que muitas pessoas
divergem da decisão política do Ministro. Mas a verdade é que ele era a
autoridade competente para tomá-la.
12. Subversão da jurisprudência. Ora bem: assentado
tratar-se de ato político, a jurisprudência histórica do Supremo Tribunal
Federal é no sentido de que o Judiciário não deve sobrepor a sua própria
valoração política sobre a da autoridade competente. O mérito do ato político
não dever ser revisto. Além disso, o Supremo Tribunal Federal, também de longa
data, já havia assentado que atos referentes às relações internacionais do país
– como o refúgio – são de competência privativa do Poder Executivo. Vale dizer:
para extraditar Cesare Battisti, o STF precisa modificar, de maneira profunda,
três linhas jurisprudenciais antigas, consolidadas e corretas, passando a
afirmar: a) refúgio não extingue automaticamente a extradição; b) não constitui
ato de natureza política; e c) atos relativos às relações internacionais do
país não constituem competência privativa do Executivo. Até a jurisprudência
antiga e reiterada de que o STF apenas autoriza a extradição, mas que a decisão
final é do Presidente da República, está sob ataque.
13. Impossibilidade da extradição: crime político.
Mesmo que o refúgio fosse anulado, a extradição não poderia ser concedida.
Cesare Battisti participou de um conjunto de ações na luta política italiana no
final da década de 70. Em um primeiro julgamento foi condenado por participar
de organização subversiva e de ações subversivas. O segundo julgamento,
considerado “continuação” do primeiro, incluiu quatro homicídios. A sentença
condenou-o a uma pena única – prisão perpétua – pelo conjunto das ações.
Referiu-se a elas como “um único desenho criminoso” e fez mais de trinta
referências a “subversão” da ordem política, econômica ou social. Como é
possível destacar quatro fatos e tratá-los como crimes comuns quando a sentença
é una, a pena é única e a decisão se refere ao conjunto da obra? O próprio STF
já negou extradição de italianos por ações análogas praticadas no mesmo período
– incluindo homicídio –, sendo que a decisão de uma delas é do mesmo tribunal
que condenou Battisti.
14. Impossibilidade de extradição: anistia. A
extradição, como se sabe, exige dupla imputação: é preciso que o fato seja
crime no país requerente e no país requerido. Os fatos imputados a Cesare
Battisti – ainda que se quisesse, arbitrariamente, ignorar sua natureza
política –, são conexos com sua atuação política. No Brasil, a Lei da Anistia
(Lei nº 6.683/79) e a Emenda Constitucional nº 26, de 1985, anistiaram os
“crimes de qualquer natureza” relacionados com crimes políticos ou praticados
por motivação política, praticados entre 2 de setembro e 15 de agosto de 1979.
Pois bem: a sentença italiana afirma, textualmente, que as mortes foram
praticadas como justiçamento de “inimigos do proletariado” e de “agentes
contra-revolucionários”. Battisti foi até condenado pela reivindicação política
dos atentados, tipificada como propaganda subversiva. Como seria possível
afirmar que não são crimes que tiveram motivação política? A Itália, passadas
mais de três décadas, não conseguiu aprovar uma lei de anistia. Mas nós, sim.
Felizmente. Se houve anistia aqui pelos mesmos fatos, não cabe extradição.
15. Impossibilidade da extradição: prescrição. A
sentença proferida no segundo julgamento contra Cesare Battisti é de 13.12.1988
– por ironia, data de aniversário do Ato Institucional nº 5. A condenação foi à
pena de prisão perpétua. O Ministério Público não recorreu, até porque não
tinha interesse. Para ele, portanto, deu-se aí o trânsito em julgado. Em
13.12.2008, consumou-se a prescrição. O entendimento pacífico do STF é que a
prisão preventiva – Battisti foi preso em 2007, para fins de extradição – não
suspende o curso da prescrição. Para deixar de reconhecer a prescrição, o STF
teria que alterar também essa linha jurisprudencial consolidada. Note-se que em
relação a um dos homicídios – o de Torregiani – a condenação de Battisti
envolve “reformatio in pejus”, já que, no primeiro julgamento coletivo, outras
pessoas – e não ele – foram condenadas. Note-se, também, que em relação a esta
condenação, a sentença de 1988 foi inicialmente anulada com remessa para
confirmação. E foi efetivamente “confirmada”, nos termos da própria decisão
italiana. Não se reabriu prazo recursal para o Ministério Público e, portanto,
o termo a quo da prescrição não foi alterado.
16. Impossibilidade da extradição: violação do devido
processo legal. A extradição é inviável, pois a sentença condenatória violou
elementos essenciais do devido processo legal (Constituição, art. 5º, LIV e Lei
nº 6.815/80, art. 77, VIII): cuidou-se de revisão criminal in pejus, na qual o
peticionário restou revel perante Tribunal do Júri. Além disso, foi condenado a
prisão perpétua – sem que a Itália tenha se comprometido a comutar a pena –,
representado por advogado que era também patrono de outros réus implicados nos
mesmos fatos, em conflito de interesses, sendo certo que o fundamento
determinante da nova condenação foi depoimento obtido em programa de delação
premiada.
CONCLUSÃO
17. Como qualquer pessoa do ramo poderá constatar,
não são teses retóricas, sentimentais ou políticas. Pelo contrário, trata-se de
argumentação jurídica, fundada no conhecimento convencional e na jurisprudência
dominante. A anulação do ato de refúgio, sem procedimento próprio, do qual
tivessem participado a autoridade competente e o próprio refugiado, é que não
corresponde ao entendimento tradicional, tanto no direito internacional como no
interno. Ainda assim, reitera-se aqui o respeito devido e merecido por quem
professa crença diversa.
18. Como assinalado, a defesa não seguiu o caminho do
argumento humanitário, que poderia ser assim enunciado: Cesare Battisti vive há
mais de trinta anos uma vida pacata e produtiva; constituiu família e contribui
decisivamente para a criação de duas filhas ainda jovens (14 e 25 anos); é uma
pessoa querida e respeitada na comunidade intelectual francesa, da qual participou
ativamente nos 14 anos em que esteve abrigado na França. A pergunta é natural e
óbvia: em que serve à causa da humanidade mandar esse homem para cumprir prisão
perpétua na Itália? Outra pergunta: que sentimentos ainda movem aquele
admirável país para fazer com que, décadas depois, não tenha conseguido aprovar
uma lei de anistia dos velhos adversários? Mais do que isso, como bem destacou
o professor Celso Antônio Bandeira de Mello: observando a inacreditável
mobilização política italiana, trinta anos depois dos fatos, é possível
imaginar que eles estejam mesmo à caça de um criminoso comum? E alguém acha,
verdadeiramente, que há ambiente político na Itália para que esse homem cumpra
pena sem grave risco de violações à sua dignidade? Uma última pergunta: por que
o Brasil deveria fazer uma ponta nesse filme, desempenhando um atípico papel de
carrasco?
19. A defesa não explorou, tampouco, uma linha de
argumentação política. Battisti foi militante do sonho socialista, que empolgou
corações e mentes em outra fase da história da humanidade. É vítima de uma
expedição punitiva fora de época. Cesare Battisti, tragicamente, não consegue
se desvencilhar de sua sina de troféu simbólico de disputas políticas por onde
passa. Em meio a palavras de ordem e juízos sumários, poucos são os que leram a
decisão concessiva de refúgio. E menos ainda os que estão verdadeiramente
interessados em sua vida, seus direitos e no terror que o espera em um cárcere
político italiano.
20. Não tem sido fácil enfrentar a pretensão da
Itália. Por muitas razões. Trata-se de um país fascinante, poderoso e querido
pelos brasileiros. Um encantamento que não se abala pelas notícias
estarrecedoras que vêm de lá, em domínios que vão da perseguição a imigrantes a
usos atípicos de palácios governamentais. Nem por certas práticas políticas que
espantariam os mais atentos observadores da cena política latino-americana.
Como, por exemplo, a que levou à “convocação” do representante no Brasil do
Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados. Sob ameaças e
intimidações, foi obrigado a cancelar as audiências que pedira aos Ministros do
STF e teve de fazer as malas e partir. Basta consultar alguém que tenha ouvido
seu relato, sofrido e indignado, acerca da pressão feita pela Itália junto ao
órgão (ACNUR), em Genebra.
21. Tampouco é fácil enfrentar um certo senso comum,
que se colhe na opinião pública em geral – e na mídia, em particular – de que,
pelas dúvidas, não devemos nos incomodar e nos indispor com a Itália por um
indivíduo que nada tem a nos oferecer. Uma visão pragmática e utilitária da
vida, que não leva em conta miudezas como dignidade humana e direitos
fundamentais das pessoas. É nesse ambiente de indiferença que o público deixa
de saber de alguns fatos que talvez fizessem diferença, como por exemplo:
a) que o Procurador-Geral da República até alguns
meses atrás – o Dr. Antônio Fernando de Souza –, cujas manifestações sempre
atraíram grande interesse da imprensa, pronunciou-se de maneira taxativa pela
validade do refúgio e pela extinção da extradição;
b) que na data do julgamento, seu sucessor, Dr.
Roberto Gurgel, fez um veemente pronunciamento em favor do respeito ao refúgio,
fim da extradição e libertação de Cesare Battisti;
c) que alguns dos mais proeminentes juristas
brasileiros, pro bono e desinteressadamente, se pronunciaram em favor do
refúgio e da extinção da extradição, dentre os quais os Professores José Afonso
da Silva, Paulo Bonavides, Dalmo Dallari e Celso Antônio Bandeira de Mello;
d) que a Comissão de Assuntos Constitucionais da
Ordem dos Advogados do Brasil e o Instituto dos Advogados do Brasil se
manifestaram favoravelmente à validade do ato de refúgio e à extinção do
processo de extradição;
e) que o Ministro Joaquim Barbosa não apenas proferiu
voto a favor do refúgio e contra a extradição (acompanhado pelos eminentes
Ministros Eros Grau e Cármen Lúcia), como se queixou de maneira veemente contra
a “arrogância” do governo italiano nesse caso e contra a “insistência
inapropriada” da Itália em suas gestões junto ao Supremo Tribunal Federal.
22. A perspectiva é que na retomada do julgamento,
com o voto-vista do Ministro Marco Aurélio, ocorra um empate. Sinal inequívoco
de que, no mínimo, há dúvida razoável. Note-se bem: com todo o peso político da
Itália e com todo o peso de uma opinião pública predominantemente contrária,
talvez haja empate. Só quem estava do lado da defesa pode saber o que isso
significa. Pois bem: depois de se excepcionarem tantos precedentes – refúgio
não é ato político, relações internacionais não são competência privativa do
Executivo, prisão preventiva interrompe a prescrição –, seria o caso de se
excepcionar só mais um e decidir: in dubio, pró condenação? Condenar um homem
por voto de Minerva? Só para registro, a origem da expressão refere-se à
decisão da deusa Atenas (Minerva), que diante do empate, absolveu Orestes, que
vingara a morte de seu pai, Agamenon.
23. Estes os fatos e as teses jurídicas. A história
real, documentada, que não se consegue contar. De um lado, o poder, as razões
de Estado, a perseguição sem fim. De outro, um indivíduo, seus direitos
fundamentais, a página virada da história. A partir daqui, cada um formará seu
próprio juízo, de acordo com seus valores, suas crenças, seus desejos. Não
tenho, nem poderia ter, a pretensão de controlar o pensamento e o sentimento
alheios.
Luís Roberto Barroso
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